"Era fácil saber quando ele estava na agência. Bastava ver se ainda havia café na térmica. Se estava vazio, é porque redatores e diretores de arte se permitiam levantar e perder alguns minutinhos indo encher suas xícaras. Se estava cheio, o homem estava na casa. E se o homem estava na casa, ninguém tinha coragem de levantar para pegar café". Um de meus antigos diretores de criação contou essa história, rindo, se referindo a um célebre líder da propaganda do início do século. A anedota é uma das diversas que circulam em happy hours, descidas para o cigarro e ensinamentos passados de criativo para criativo. Um boca a boca muito posterior àquela planilha que todo publicitário conhece e aguarda religiosamente todo ano sua chegada.
A Planilha das Agências (acesse sua última versão aqui) surgiu com uma dúvida sincera: "como é trabalhar aí?". E entre um relato e outro, o que ficou claro é o que o Grupo de Planejamento de São Paulo atestou em 2017: 99% dos publicitários já presenciaram situações de assédio no trabalho. Jornadas exploratórias, salários baixos, assédio moral, assédio sexual, racismo e algumas outras degradações humilhantes são rotina nas mais criativas agências do Brasil. Resumindo em uma frase, dita e repetida por todo publicitário que atuou em agências nos últimos 50 anos: agência é assim mesmo.
É claro que uma planilha anônima, online, sem comprovações de fatos, não deve ser tomada como verdade. Acusações graves como as listadas anteriormente devem ser investigadas e esclarecidas. Mas será que tanta gente assim tá inventando ou exagerando? E se não estão, por que o mercado é tão violento? E pior, por que as pessoas continuam atuando nele? Entre uma dúvida e outra, nasceram conversas, que viraram estudos, que viraram pesquisas, entrevistas, leituras e investigações que por fim se materializaram, seguindo os conceitos de Pierre Bourdieu em seu livro “O poder simbólico”, em um trabalho de conclusão de curso de graduação: a violência simbólica faz parte da estrutura das agências de publicidade.
As agências, como quaisquer outras organizações, são regidas por relações de poder. Mas não esse poder que você pensa. É algo muito mais implícito, quase invisível: o poder simbólico. Bourdieu trata como uma forma de coerção de força imperceptível, força essa que define como as relações se dão. O poder é dividido em tipos de capitais e distribuído entre todos os agentes do campo, ou, todos os publicitários das agências. E quem tem mais capital, tem mais poder. Homens brancos (capital social), de classe alta (capital econômico), com vasta experiência de mercado (capital intelectual), muitos prêmios no currículo (capital simbólico), rede de contatos (capital social) e cargos de liderança (capital social), têm muito poder. Todos esses capitais definem simbolicamente e, por consequência, materialmente, as regras das relações naquele espaço.
Se um indivíduo não tem capitais como os tais listados, seus poderes são menores e sua subordinação às lideranças, maiores. O grande problema dessa relação é sua leniência. O dominado não percebe sua dominação. Ele a naturaliza por assimilar que se, naturalmente, ninguém se levanta para pegar café quando o chefe está na agência, ele não deve se levantar também. E também não deve se negar a trabalhar até mais tarde, já que ninguém o faz. Nem a responder, quando tem seu trabalho humilhado. E muito menos a se posicionar quando vê um colega sofrer assédio. É tudo parte do jogo. É o "agência é assim mesmo". É a violência simbólica: a imposição de um grupo sobre o outro por meio de símbolos, gestos, palavras e representações culturais.
A célebre aspas é relevante pois, além de simbolizar o funcionamento disfuncional de uma área, permite nos aproximar com mais familiaridade a conceitos de Bourdieu. "Agência […]" define o campo, o espaço em que as relações de poder acontecem, e até onde seus agentes (publicitários) determinam, validam, legitimam suas representações. "[...] é assim mesmo" define o habitus, ou seja, as regras de funcionamento dentro deste espaço delimitado; a maneira como os publicitários se comportam, suas rotinas de trabalho e como estas rotinas são repassadas a cada novo ingressante no campo (Schuch, 2018, p. 63). Com "agência é assim mesmo" é possível validar todo tipo de comportamento que acontece dentro de uma agência. Assédio? Agência é assim mesmo. Burnout? Agência é assim mesmo. PJotização? Agência é assim mesmo. A resposta para toda pergunta. O remédio para toda dor. Com uma frase, líderes, CEOs e empresários conseguem conservar e tornar estrutura uma forma de trabalhar sustentada na violência (simbólica). E a partir disso, manter total poder sobre seu grupo de funcionários, inviabilizando a sua autonomia, tornando-o mero executor de objetivos mercadológicos e financeiros definidos a priori pelas corporações. (Hashizume, 2014, p.146)
A térmica de café continua no copa de toda agência. O publicitário da história se aposentou e escreveu um livro de autoajuda sobre felicidade com um título simbolicamente agressivo. E os publicitários ainda se questionam: levantar ou não levantar para pegar a xícara de café? Como redator criativo (substantivo, não adjetivo), recomendo seguir para onde toda grande peça publicitária começava, no início da propaganda: o título.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
HASHIZUME, Cristina Myuki. Violência Simbólica no trabalho: considerações exploratórias sobre a nova ontologia do trabalhador na Pós-Modernidade. Revista Ambivalências, v. 2, n. 4, 2015.
SCHUCH, Lucas. Transformações na Propaganda: Um olhar rizomático sobre a prática publicitária. Dissertação de mestrado, UFSM-RS, 2018.
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Gabriel Lyra é redator publicitário na Agência SoWhat, de Curitiba. Graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Paraná, apresentou o TCC "Terrível contra os insetos: a violência simbólica como parte da estrutura das agências de publicidade de Curitiba".