O ano era 2020.
A doença, o medo e o confinamento.
A pandemia não foi fácil para ninguém. Eu tinha acabado de me formar em Comunicação Social - Habilitação em Publicidade e Propaganda, pela Universidade Federal do Paraná. Posso dizer que todas as expectativas criadas para esse momento se frustraram, a começar por uma formatura cancelada e um mercado que, se já não era fácil, tornou-se ainda mais incerto.
Ainda havia o desejo de colocar em prática, como publicitária recém-formada, todo o conhecimento adquirido na graduação. Já fazia trabalho remoto em agência, como redatora, mas, em um mundo em transformação, com flexibilidade de vínculos empregatícios, poderia tentar algo a mais.
Aí que as plataformas freelancers apareceram na minha jornada e me presentearam com muitos pontos de interrogação. Nesses sites, profissionais independentes podem se candidatar a projetos e, muitas vezes, negociar diretamente com clientes.
De início, pareceu promissor. Porém, a cada proposta enviada, as assimetrias e injustiças dessas estruturas deixavam cada vez mais claro que, apesar de a internet parecer o oásis da prosperidade, os modelos de negócio não costumam ser pensados para o benefício do trabalhador.
Então, começaram os questionamentos. Se somos livres para trabalhar com quem quisermos, por que sinto que vou ser rejeitada ao cobrar um valor justo? Por que a escrita, imprescindível para a comunicação digital, está tão desvalorizada?
Minhas inquietações me levaram a uma pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná, com o objetivo de compreender os dilemas éticos enfrentados por profissionais de redação publicitária em plataformas freelancers.
Durante a pesquisa, questões próprias do mercado publicitário (como a pejotização), do trabalho de redação publicitária (como a criatividade) e da plataformização do trabalho (como a algoritmização da informação) se mesclaram às experiências de várias pessoas que foram entrevistadas. O resultado foi o mapeamento de características das identidades profissionais e dos conflitos éticos nesse contexto.
A teoria dos Multiníveis da Ética Publicitária, da pesquisadora Minette Drumwright, foi essencial para caracterizar os dilemas éticos em três níveis:
Na imagem a seguir, você confere os dilemas éticos identificados na pesquisa. Caso você queira saber um pouco mais sobre cada um deles e como os profissionais se posicionam frente aos conflitos do cotidiano profissional, deixo aqui o link para a dissertação.
Ao reler os dilemas mais uma vez, enquanto escrevo este texto, sinto a conexão das questões desses profissionais de redação publicitária com os sintomas do mercado atual, marcado por flexibilização das leis trabalhistas e pela ampliação da publicidade para além da agência tradicional.
Nas plataformas freelancers, a pessoa que trabalha escrevendo também está empreendendo, assumindo a responsabilidade pelas suas transações econômicas ao mesmo tempo em que é gerida pela organização, em uma contradição entre ser livre para negociar e ter a disposição necessária para servir.
Sua remuneração é regulada pela plataforma ou por uma concorrência desleal - o famoso “cobrar o menor valor possível” para conquistar o cliente.
Seu tempo é alocado na espera da aprovação de uma proposta e, depois disso, tem que ser muito ágil para fechar o negócio.
Sua criatividade é limitada, pois o sucesso do texto depende do atendimento a diretrizes de distribuição de conteúdo.
Seu comprometimento com a plataforma é essencial para ter um fluxo contínuo de trabalho pois, a cada projeto entregue, você se torna mais “experiente” para a organização, quem sabe, até ganha um perfil cinco estrelas.
E, no fim, as relações de dependência são diversas. Quem trabalha com redação freelancer pode acabar dependendo da plataforma a qual, necessariamente, também depende das big techs, que dominam a distribuição de conteúdo digital.
Para dar conta desse mundo que corre nas veias da distribuição de dados, novos arranjos precisam ser feitos. A criação de novos modelos de negócio e a adaptação a eles faz parte da vida laboral e da dinâmica do mercado. Porém, muitas vezes, a filosofia da agilidade e da produtividade são exacerbadas, diluindo nossas identidades em meio a rituais que desumanizam o trabalho enquanto atividade de gestão de si.
É preciso pausar um pouco, para dar tempo de olhar para o outro e reconhecer, além de um concorrente, um semelhante. No questionamento dos nossos porquês, podemos entender os desafios éticos do trabalho publicitário em ambiente digital e decidir por relações de trabalho mais justas e responsáveis.
Letícia Guimarães é mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná. Sonha com um mundo de relações justas no trabalho e uma publicidade afetiva e responsável. E-mail: leticiaguimaraespp@gmail.com