Em uma determinada tarde nos bancos aconchegantes da FACOS Agência, Agência Experimental de Publicidade, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, eu (Julian) e os professores (Rodrigo e Janderle) nos deparamos com um filme publicitário que circulava nas redes sociais já há algum tempo. O audiovisual “Gerações” da marca Volkswagen levantava discussões entre os internautas sobre inteligência artificial e questões éticas na propaganda.
Antes de continuarmos com a conversa, vou comentar brevemente sobre a obra, aliás, para quem quiser assistir, é só clicar aqui. O filme publicitário da marca, criado pela agência AlmapBBDO, fez parte das celebrações dos 70 anos da Volkswagen no Brasil. Mostrando os diferentes produtos da empresa, ou seja, modelos de automóveis, a marca busca comunicar que está presente na vida das famílias brasileiras, passando de geração para geração. Para isso, por meio de inteligência artificial, a marca recriou filmicamente a cantora Elis Regina, propondo um encontro entre ela e sua filha.
É nesse último ponto que o bicho pega. A cantora Elis Regina era resistência no período da sangrenta ditadura brasileira. Em contrapartida, a Volkswagen, foi uma empresa que apoiou o regime, conforme nos mostra o sensível documentário Cúmplices? - A Volkswagen e a Ditadura Militar no Brasil, que apresenta testemunhos de ex-funcionários da empresa que foram torturados dentro das instalações da indústria de automóveis.
Diante disso, ficamos pensando: em que medida é possível falar em ética na publicidade brasileira? O que o código de ética da publicidade diz sobre inteligência artificial? Aliás, será que o filme publicitário indicou que a cantora foi recriada via inteligência artificial? Muitas questões a serem pensadas. É papo para mais de um chimarrão.
Buscando respostas, analisamos a campanha publicitária com base, essencialmente, nos seguintes princípios:
Ao pegarmos o primeiro item de análise: veracidade e transparência, assistimos e reassistimos o filme e não identificamos nenhum elemento fílmico que comunicasse ao espectador que se tratava do uso de inteligência artificial. Sobre este ponto, inclusive, foi aberto um processo no CONAR - Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária, mediante queixa de consumidores para verificar “se era necessária informação explícita sobre o uso de tal ferramenta para compor o anúncio”. Diante desta questão, o órgão apontou na decisão “134/23 - Volkswagen E Almapbbdo - Vw Brasil70: O Novo Veio De Novo” que não existe regulamentação específica em vigor sobre a questão, portanto, arquivou-se a queixa.
Quanto ao segundo ponto, referente a proteção dos direitos autorais, recorrendo novamente a decisão do Conar, foi possível observar que os familiares da cantora aprovaram a inserção da mesma no comercial. Por último, quando nos debruçamos sobre o terceiro princípio, voltado à identificação clara da mensagem publicitária, nota-se que no anúncio, mais especificamente na minutagem de um minuto e cinquenta e quatro segundos aparece a assinatura do comercial “Volkswagen 70 anos - Sucesso que passa de geração em geração”, deixando explícito que se trata de uma comunicação empresarial.
Diante da análise que engloba os três princípios, conclui-se que, quanto ao princípio da veracidade e transparência, há problemas evidentes, uma vez que não identificamos elementos da linguagem cinematográfica e narrativa que indiquem se tratar de inteligência artificial, sendo assim, os princípios éticos não foram respeitados. Ainda sobre este ponto, estudos futuros podem trabalhar com a questão da regulamentação da inteligência artificial, sobretudo no campo publicitário, pois, conforme notamos na decisão do Conar, existe lacunas na quanto aos aspectos do uso da IA. Pensando na proteção dos direitos autorais, segundo consta na decisão do Conar, os herdeiros, detentores dos direitos, autorizaram a utilização da imagem, cessando qualquer discussão de cunho ético nesse quesito. Por último, quanto à identificação clara da mensagem publicitária, compreendemos que o comercial atende aos princípios éticos estabelecidos.
Portanto, este caso, que ganhou bastante repercussão nas redes sociais envolvendo diferentes aspectos, como manipulação da arte, respeito e legado, percepção pública e incompatibilidade ideológica, entre outros, tornou-se apenas um exemplo sobre a importância da regulação da inteligência artificial na publicidade.
Julian Medeiros é Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação (POSCOM/UFSM) e publicitário pela mesma instituição, e-mail: julian.muniz@acad.ufsm.br.
Janderle Rabaiolli é Doutor em Comunicação pelo POSCOM/UFSM, Professor do Curso do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Pesquisador no Grupo Publicidade Conectiva e no OPETIC (Observatório de Publicidade e Ética no Consumo), e-mail: janderle.rabaiolli@ufsm.br.
Rodrigo Stéfani Correa é Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor do Curso do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e-mail: rodrigo.correa@ufsm.br.